Revista de Psicofisiologia, 2(1), 2000

O Sono, destacando o sonho, o ritmo biológico e a insônia

2.2) Ritmos biológicos e o desempenho humano no trabalho

        A mais importante contribuição da cronobiologia é a noção de variabilidade das funções biológicos e comportamentais ao longo das vinte e quatro horas do dia, o que faz com que os trabalhadores respondam ou tendam a responder diferentemente a uma mesma situação de trabalho conforme o momento do dia em que ela ocorra.

        Não devemos esquecer que a situação real de trabalho não é um terreno de experimentação em que se podem isolar todas as variáveis que influenciam a atividade do trabalhador. A interação entre vários membros de uma equipe de trabalho pode funcionar como modulador dos ritmos circadianos individuais. O trabalhador está colocando em jogo seu organismo como um todo, pois não há nenhuma tarefa que seja exclusivamente mental ou física. As empresas não podem admitir, do ponto de vista econômico, grandes flutuações na sua produção e, portanto, na sua produtividade, e para isto dispõem de poderosos mecanismos de controle que limitam possíveis flutuações no desempenho. Assim, podemos entender infelizmente porque medidas diretas do desempenho, vistas como resultados quantitativos de tarefas, nem sempre são indicadores fiéis das variações fisiológicas circadianas e de adaptação dos trabalhadores às suas funções.

        Para garantir um bom desempenho, os operadores modificam sua atividade e sua estratégia de trabalho a fim de ajustar as exigências da tarefa à sua capacidade funcional momentânea e que isto se faz à custo de um esforço adicional. Em muitos casos os trabalhadores atingem um nível de carga de trabalho elevado sem que haja variação no desempenho. Se isto já é verdade de dia, à noite, por causa da redução das aptidões humanas e da menor tolerância a exigências da situação, os operadores devem realizar um esforço suplementar para fazer um mesmo trabalho. As conseqüências devem ser procuradas ao nível dos trabalhadores e não apenas ao nível da produtividade. Observam-se as condições "espontâneas" dos sujeitos em situação de trabalho, que, utilizando como indicadores comportamentais a atividade locomotora ou postural, as comunicações verbais, a movimentação ocular ou a direção de olhares, constataram não só uma redução da atividade no período noturno e máximo à tarde. Concluíram, assim, que os operadores descobrem estratégias de trabalho que satisfazem melhor o seu estado num dado momento, em resposta às variações circadianas de seu estado funcional.

        A noção de variabilidade do estado funcional dos trabalhadores em função do tempo é diametralmente oposta à concepção dos organizadores do trabalho tradicionais, que se baseiam na suposição de uma grande estabilidade, tanto dos elementos técnicos da produção como dos elementos humanos. Assim, pode-se dizer que as formas de organização temporal do trabalho não levam em conta a variabilidade rítmica circadiana nos indivíduos e prejuízos saúde dos trabalhadores. Definitivamente não se pode exigir um mesmo nível de produtividade em qualquer tarefa e para qualquer trabalho, pois os indivíduos se encontram em estados funcionais diferentes durante o dia. Em alguns momentos podem estar sujeitos a exigências superiores a sua capacidade de resolvê-las e, em outros, inferiores. Outra conclusão importante diz respeito à concepção dos sistemas produtivos que deveriam deixar aos operadores a possibilidade de alterar seus procedimentos de trabalho em função de suas capacidades funcionais. A inflexibilidade de procedimentos operatórios, como prescreve a organização tradicional do trabalho, deve ser evitada.

        Quanto a organização do trabalho em turnos, a cronobiologia interpreta os prejuízos causados como decorrentes de uma desordem temporal do organismo. É unânime a constatação de que o trabalho noturno, seja ele fixo ou alternante com o trabalho diurno é prejudicial à saúde. Portanto, muitas precauções devem ser tomadas para evitar problemas pessoais e das firmas (Rutenfranz et al, 1989).

        O homem é um ser essencialmente diurno e isto significa que toda a sua ordem temporal interna lhe permite um funcionamento diferencial entre o período do dia, concentram-se acordados e conscientes do meio externo, e o período da noite, dedicado em sua maior parte ao sono e a uma consciência íntima. Esta ordem temporal interna é resultante da influência de fatores endógenos, os marca-passos ou osciladores centrais, e de fatores ambientais, os sincronizadores. Diferentemente das outras espécies, para o homem estes sincronizadores naturais não têm um papel tão predominante, pela enorme relevância dos sincronizadores sociais modernos.

        A ampliação dos processos contínuos de produção nas sociedades modernas, principalmente os relacionados com a automatização, tem desrespeitado os horários tradicionais da sociedade e criado para os indivíduos, que neles trabalham, situações em que seus horários de trabalho entram em contradição com os horários socialmente estabelecidos. Quando um trabalhador é submetido a um horário de trabalho noturno, isto é, há um sincronizador cuja fase está invertida em relação aos demais sincronizadores sociais e consequentemente é obrigado a dormir no período diurno, ele sofre influências de fatores como: os horários de trabalho invertidos, enquanto a vida social continua ocorrendo nos horários-padrão, a sociedade, a família etc; e acresce que os diversos ritmos circadianos não são os mesmos. Por exemplo, quanto ao ritmo vigília/sono, a resposta a alguns testes de desempenho, do nível de adrenalina no sangue e o volume urinário se incluem dentre aqueles que se ajustam rapidamente. Já o ritmo da temperatura central, o sono paradoxal, a taxa urinária do 17 hidroxicorticosteróide se adaptam lentamente no decorrer de vários dias. A desordem corporal, causada pelo conflito de sincronizadores e a inércia do sistema circadiano, é suficientemente pronunciada para processar novo ajustamento quando o trabalhador retornar ao turno diurno após um período de trabalho noturno. Prova disso é que a primeira noite de sono noturno após um período de sonos diurnos não apresenta todas as características de um sono de recuperação.

        Existem, ainda, diferenças interindividuais em relação organização da ritmicidade circadiana: os chamados tipos vespertinos e matutinos, com preferências opostas quanto aos horários de atividade e repouso, reagem diferentemente ao trabalho em turnos. Também a idade influencia. Sabe-se, por exemplo, que a amplitude da oscilação dos marca-passos endógenos é significativamente reduzida nos mais idosos em relação aos jovens e que o mínimo circadiano da temperatura corporal ocorre mais cedo nos idosos (4:22 h +/- 20 min) do que nos jovens (6:42 h +/- 45 min).

        As rotações com sentido horário, isto é, manhã > tarde > noite, são mais facilmente tolerados que as rotações inversos (noite > tarde > manhã), provavelmente porque é mais fácil de se ajustar a um atraso de fase do que a um adiantamento, uma vez que os períodos endógenos nos ritmos circadianos humanos são superiores a 24 h. As chamadas rotações curtas (2 ou 3 dias em cada turno) também têm sido recomendadas em relação às rotações longas (superiores a 4 dias). Isto se explica através de 2 raciocínios: o primeiro é limitar o déficit de sono quando dos turnos noturnos e o segundo pressupõe que rotações curtas não dariam tempo ao organismo para se ajustar a um horário diferente e, portanto, perturbariam menos a ordem temporal interna.

        Entre as queixas mais freqüentes dos indivíduos que trabalham em turnos estão os problemas do sono. Os trabalhadores queixam-se de dificuldades de dormir durante o dia, sono curtos, interrompidos, não reparadores, ou não nutritivos como dizem os turnistas, e de dificuldades em se manter acordados durante o turno da noite principalmente entre as 3 e 4 horas da madrugada. As estratégias utilizadas para combater estes efeitos são variadas, mas todas de eficácia reduzida. Relatam-se casos de trabalhadores que misturam café com coca-cola para combater a sonolência no turno da noite e se utilizam de bebidas alcoólicas para facilitar o sono diurno.

        As perturbações do sono desses trabalhadores ocorrem frente às alterações do ritmo circadiano de sono e vigília, decorrentes das mudanças periódicas dos horários de trabalho. Alguns distúrbios do sono e da vigília podem estar associados a mudanças abruptas dos sincronizadores exógenos quando, por exemplo, de uma viagem transmeridiana, chamada de síndrome de mudança rápida de fuso horário ou "jat leg", de uma mudança transitória do horário de trabalho, trabalho noturno eventual, ou ainda, quando da implantação ou retirada do horário de verão.

        Aparentemente o ciclo de vigília/sono consegue acompanhar as mudanças de fase impostas pelas mudanças nos horários de trabalho com relativa dificuldade, isto é, os trabalhadores deslocam o seu horário de deitar e de levantar conforme seu horário de trabalho. Porém, este deslocamento não significa que a estrutura interna do sono se tenha ajustado porque todas as características do sono/hora de dormir, de acordar, aparecimento do primeiro episódio do sono paradoxal etc estão relacionados com as flutuações circadianas de outras variáveis, como a temperatura, que, no caso do trabalhador em turnos, estão bem defasados.

        Em trabalhadores em turnos o que se vê é que os episódios de sono diurno, principalmente os primeiros, além de terem uma menor duração, não apresentam uma estrutura temporal típica dos diferentes estágios do sono, nem mantém a proporção normal destes estágios entre si, ou seja, nota-se que o retardo para entrar em sono MOR é menor e que a duração do primeiro episódio do sono MOR é maior que os subseqüentes, além disso, a incidência do sono profundo diminui, aumentando as incidências dos estágios 2 e 1, além dos episódios de vigília intercalados. Desta forma, do ponto de vista fisiológico, o sono diurno não é equivalente ao sono noturno. Realmente o sono diurno dos trabalhadores em turnos é qualitativa e quantitativamente deficiente fazendo com que esta população sofra cronicamente de privação de sono, o que tem repercussões sérias por toda a vida.

        Alguns exemplos de conseqüências do esquema de turnos são: sonolência, insônia com dificuldade de dormir na hora do novo sincronizador social, distúrbios gastrointestinais eventuais, gastrite e úlcera péptica, falta de apetite e/ou sensação de fome, queda do desempenho nas mais diversas tarefas físicas e mentais, queixas de desordem psiquiátrica e cardiovasculares, hipertensão e enfarte do miocárdio. Recentemente, um estudo sueco sobre as influências dos ambientes de trabalho nas doenças cardiovasculares mostrou alguma relação entre patologias cardíacas esquêmicas com o trabalho em turnos. Outros estudos têm-se centrado nas repercussões do trabalho em turnos na vida social e familiar dos trabalhadores. Os horários de trabalho em turno diferentes dos seguidos pela maioria da população e permanentemente em mudança causam uma série de desencontros, perturbando a participação em atividades sociais organizadas como o estudo, a militância em associações culturais ou políticas e na vida familiar. O contacto com inúmeros trabalhadores em turno em diferentes sistemas e em diferentes profissões, tem mostrado como é difícil para eles integrar-se na vida social da comunidade e como é penoso sentir-se marginalizado.

        Comparando taxas de mortalidade entre trabalhadores exercendo profissões semelhantes no setor gráfico, mostraram que, entre trabalhadores noturnos a mortalidade era mais precoce do que os trabalhadores diurnos. Não se pode afirmar com certeza que o trabalho em turnos fosse o responsável pelos resultados, mas é um dos fatores a serem levados em conta.