Revista de Psicofisiologia, 1(1), 1997

A loucura e o controle das emoções

1) A LOUCURA EM QUESTÃO 

1.1) Introdução e histórico

Na antigüidade a loucura era considerada como uma manifestação divina. O ataque epiléptico , intitulado a doença sagrada, significava maus presságios quando ocorria durante os comícios. Se uma pessoa sofresse um ataque epiléptico durante a explanação de um dos oradores, tal evento era interpretado como sendo uma intervenção divina, como um sinal de que não se deveria acreditar no que dizia o orador.

Coexistindo com essa visão, na Grécia antiga, Aristófanes acreditava que a doença mental pudesse ter características específicas e uma causa definida. Ele justificava o pensamento da época, que atribuía à doença mental uma manifestação divina, à peculiaridade da doença que causava assombro aos demais. Por pensar na doença mental como orgânica, Aristófanes defendia uma intervenção a base de banhos, purgativos e de alimentação especial.

Ao longo da história, os loucos foram concebidos sob vários visões. Na idade média as cidades escorraçavam os loucos (os de origem estrangeira), deixando-os correrem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Havia barcos que levavam os insanos de uma cidade para outra, e como errantes eles vagavam de cidade em cidade. Freqüentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos.

Alguns loucos eram protegidos pelas suas famílias, outros eram acorrentados, outros exorcizados, outros queimados (bruxos).

No século XVIII começaram a aparecer espécies de asilos, que, também, abrigavam de forma sub- humana os loucos, nesses lugares os loucos continuavam vagando e falando incoerentemente. Os mais alterados eram imobilizados com lençóis úmidos. Podemos citar como exemplo dessas "casas de detenção" o Hotel Dieu de Paris e a Torre dos Loucos de Caen na França.

Mais recentemente, do ponto de vista orgânico, vários estudos apontam para causas bioquímicas das doenças mentais. Como exemplo desses estudos citamos a paralisia geral progressiva, que apresenta em sua fase terminal um quadro semelhante ao da esquizofrenia.

Assim como a paralisia geral progressiva, a pelagra também apresenta , entre seus sintomas clínicos quadros psicóticos depressivos e demenciais.

Também a fenilcetonúria, doença genética, era acompanhada de deficiência mental.

Essa correlação de doenças orgânicas com doenças mentais evidencia a existência de uma lesão bioquímica causadora de doença cerebral e psiquiátrica, o quê despertou grande interesse pelas bases neuronais do comportamento humano. Graças a esse interesse, os pesquisadores biológicos aprofundaram e, atualmente, sabemos da importante função dos neurotransmissores e receptores. por exemplo, sabemos que na doença de Parkinson há uma redução de dopamina nos núcleos da base o que provoca além dos tumores, alterações da fala, anormalia de marcha e postura e alterações psíquicas.

Apesar dessas descobertas recentes sobre a bioquímica do cérebro e das descobertas dos psicofarmacos representarem um grande avanço no campo das doenças mentais, ainda assim não respondem por completo sobre as causas das doenças mentais. Há outras doenças cujas causas orgânicas permanecem obscurecidas em alguns pontos, como no caso da esquizofrenia. Sabe-se que a genética estaria entre essas possíveis causas que contribuiriam para o aparecimento da esquizofrenia, o que foi demonstrado em trabalhos publicados em 1953, por F. Kallann no seu livro Hereditariedade na saúde e na doença mental.

Na esquizofrenia o indivíduo apresenta alterações motoras, de humor e de contato com a realidade. Apresenta alucinações auditivas e delírios que se manifestam na forma de idéias falsas e improváveis que o indivíduo acredita como sendo verdadeiras e lógicas e não há como convencê-lo do contrário.

Dentre as possíveis causas da esquizofrenia, resultados de experiências apontam para o excesso de dopamina nas sinapses dopaminérgicas na área tegmental-A10. Esse excesso seria o resultado de um aumento de liberação de dopamina, de receptores supersensíveis e/ou de uma reabsorção lenta desse neurotransmissor pelas células nervosas no estriato ventral, que atua no tálamo fechando a entrada de informações para o cortex forntal (Graeff e Brandão, 1993).

Outras substâncias neurotransmissoras também estariam envolvidas na esquizofrenia, bem como na psicose-maniaco-depressiva. (PMD)

Indivíduos que sofrem de PMD apresentam períodos marcados por depressão e manias, seguidos por períodos de normalidade. O sujeito durante os períodos de crise se vê às voltas com sentimentos de tristeza profunda e pessimismo, podendo ocorrer idéias suicidas. O sujeito pode também apresentar como sintoma a mania que é o oposto da depressão. Como características dessa doença destacamos a elevação excessiva do humor e a euforia, com aumento da atividade motora e alterações psíquicas, manifestadas por aceleração do pensamento, fuga de idéias e até delírios, principalmente os de grandeza.

As aminas neurotransmissoras também estariam por trás de toda essa desordem. A hipótese aminérgica propõe que o déficit funcional de um ou mais amina estaria associado à depressão e o excesso de aminas, como norepinefrina, a serotonina e a dopamina estariam associadas à mania. Relaciona-se com áreas cerebrais de motivação e punição e da ação simpatominérgica das aminas.

O quê sabemos hoje advém de contribuições de estudos sobre os neurotransmisores, da análise dos metabólitos e da neuroendocrinologia.

Acerca desse pensamento, questões foram levantadas no sentido de se querer saber se esta "perda" de sentido constituía ou não uma enfermidade. Uma outra linguagem vai tentar abarcar o tema da loucura, buscando complementar o que a linguagem social não conseguiu por si só abranger. A linguagem médica, tida como a linguagem oficial, contribuiu não só para esclarecer sobre muitos aspectos da loucura, como também permitiu uma abertura em nossa compreensão social da loucura, mas também se burocratizou na rotina profissional. Os aspectos levantados pela linguagem médica foram brevemente tratados no início deste trabalho e serão melhor desenvolvidos ao final deste.

Ao tentarmos enfatizar os dois aspectos da loucura, o biológico e o social, queremos chamar a atenção para não permitirmos que tenhamos uma visão míope do problema, em que uma perspectiva tente anular a outra.

O que escrevemos até o momento nos dá evidência do quanto foi importante a correlação doença orgânica X doença psíquica. A partir dessa correlação foi possível o desenvolvimento de novas práticas de tratamento das doenças psíquicas. Estudos sobre os neurotransmissores, avanços da farmacologia, da neuroendocrinologia e da descoberta de fatores biológico como possíveis causas das perturbações mentais, representaram um salto para a humanidade, pois aumentou o nível de compreensão da doença e possibilitou tratamentos mais humanos e eficazes, no sentido de controlar suas manifestações, além de um crescente interesse por essa área de estudo. Esse conhecimento contribuiu, diminuindo o número de internações nos "asilos", permitindo ao louco conviver de forma mais harmoniosa na sociedade dos ditos normais. Por outro lado, por maior que foi esse avanço não se conseguiu, até hoje, definir uma causa orgânica, unificada, para a loucura.

Apesar desses grandes avanços e da tentativa crescente de tentar situar a loucura no campo das doenças biológicas, sem ter a pretensão de negar este fator, devemos também estarmos atentos ao lugar do psíquico na experiência da loucura. Para tanto é necessário situar a loucura num contexto social.

A loucura é uma experiência social e psicológica. Dizemos que é uma experiência social , tendo em vista a maneira variada que os grupos sociais a concebem. O que nós caracterizamos como loucura pode não ser para um outro grupo. Os critérios segundo os quais é julgada esta experiência são variados. Os grupos sociais delimitam o campo da loucura de maneira distinta. A noção de loucura é diversificada e relativa, uma vez que cada grupo tem uma linguagem particular para defini-la.Segundo Joel Birman (1983) essas diversas linguagens sociais implicam também práticas sociais diversas.

Comparando as diferentes maneiras que grupos de regiões do interior e grupos dos grandes centros lidam com a doença, percebemos que, enquanto algumas regiões o louco participa do convívio familiar, desfrutando um espaço comum, nas grandes cidades modernas este convívio nem sempre é possível. A maneira de se perceber as perturbações emocionais também varia de grupo para grupo. Há pessoas que ao se depararem com estes tipos de problemas buscam soluções no âmbito da religião e preferem conversar sobre suas perturbações com padres ou pastores. Outros procuram a intervenção médica ou psicológica ou ambas.

As práticas e linguagens sociais adotadas em relação à loucura constituem códigos que funcionam discriminando comportamentos, atitudes, sentimentos e posições, desdobrando-se em códigos de valores, certo/errado, bem/mal, desejável/indesejável etc. Tais códigos sociais, que trazemos dentro de nós, regula nossa interioridade e nossa relação com os outros. A loucura então apresenta-se para a subjetividade humana como algo estranho que foge a nossa compreensão de conduta, como uma perda de sentido. A experiência da loucura é sentida como se algo nos escapasse, algo que não conseguimos identificar como nosso. A experiência da loucura é pois a perda ou ameaça de perda da própria identidade. Ela se apresenta então como algo que se passa em nossa subjetividade para o qual não conseguimos encontrar uma linguagem capaz de defini-lo. Dessa forma podemos dizer que essa experiência situa-se no plano da linguagem, linguagem enquanto sentido que damos aos códigos sociais por nós interiorizados. "Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do universo do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de interpretar o que experimentamos." (Birman, 1983)

Assim a loucura é também uma experiência social, uma vez que é concebida de diferentes formas, tanto por grupos sociais como foi no decorrer da história. Da mais alta valorização e respeito atribuído ao louco na antigüidade, enquanto visto como a encarnação de manifestações divinas e demoníacas, à degradação e marginalização a qual o louco foi submetido no asilos sujos de fezes e urina, nenhuma dessas concepções, talvez, seja mais grave do que a perda de nossa identidade humana, nosso crescente desrespeito com a vida: a loucura de nossos tempos atuais. É inadmissível que hoje, depois de avançarmos tanto no campo das ciências, da tecnologia e da informática, estamos tão aquém do autoconhecimento e ainda não sabemos onde procurar e nem o que é felicidade.

De todos os avanços e de todas as tentativas de se querer situar a loucura no campo das doenças orgânicas e de tentar concebê-la sob o prisma da subjetividade, nenhuma dessas visões foi suficiente para quebrar o estigma que acompanha o louco. Estigma este que o faz ser percebido como o insensato, como uma pessoa não merecedora de crédito. Estigma este que uma vez atribuído ao louco nos resguarda de confrontarmos com a verdade que ele, o louco, revela a nós. Sua insensatez, sua falta de coerência espelha a nossa realidade sem sentido, escondida em nosso desatino, realidade de um povo que corre sem saber pra onde, buscando não se sabe o quê.

Antonin Artaud, citado por Cládio Willer, em seu texto sobre Van Gogh: o Suicidado pela Sociedade, escreveu:

"E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana. Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusaram a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis."

Este texto, escrito por um louco, um marginalizado e incompreendido, enquanto viveu, revela-nos a interpretação de quem assistiu ao mundo de um outro prisma, do lado dos que para nós perderam a identidade. Com todo seu devaneio, Antonin Artaud é hoje uma importante referência. "Tudo que aos olhos de seus contemporâneos pareceu mero delírio e sintoma de loucura é hoje reconhecido nas mais avançadas correntes do pensamento crítico e criação artística nas suas várias manifestações: teatro, arte de vanguarda e criações experimentais, manifestações coletivas e espontâneas, poesia, lingüística e semiologia, psicanálise e antipsiquiatria, cultura e contracultura." (Cláudio Willer- Escritos de Antonin Artaud).

Diante de tamanha expressividade indagamos o quê faz uma sociedade perceber como louco um homem, marginalizá-lo, afastá-lo do convívio social e em tão pouco tempo atribuir-lhe reconhecimento e glória. Que espécie de incomodo o louco causa em nós? Artaud foi propositadamente colocado em nosso trabalho com o objetivo de levantarmos uma reflexão:

 O QUE É A NORMALIDADE?!

"Os homens precisam saber de que nada mais além do cérebro vêm alegrias, tristezas, desesperanças e lamentações. E por isso, de uma maneira especial, nós adquirimos visão e conhecimento, nós vemos e ouvimos e pelo mesmo órgão nos tornamos loucos e delirantes, e medos e terrores nos assaltam, alguns de noite e outros de dia ... Todas essas coisas nós suportamos do cérebro, quando ele não é sadio." (Hipócrates , 460 - 335 a .C.)