Entrevista Com Pierre Bourdieu
Luciano Trigo*

    - O senhor acha que o pensamento francês está em crise?

    Pierre Bourdieu - Pode-se dizer que sim, mas essa crise faz parte de uma problemática maior da Europa em geral, que ê a multiplicação dos falsos intelectuais produzidos pelos meios de comunicação. Esses intelectuais "mediáticos" acabam prejudicando - ou ao menos ocultando - o trabalho dos verdadeiros pensadores. Eles tornam mais difíceis o pensamento e a ação pública de quem tem realmente algo interessante a dizer. Eu caracterizo a obra desses autores como fast thinking. Seus livros são exemplos de um pensamento superficial, descartável e cheio de jargões incompreensíveis. Nesse sentido, talvez a pior crise seja a da impossibilidade crescente de estabelecer um canal de comunicação eficiente com o grande público, de forma a transmitir os resultados das pesquisas sociais serias. Mas por que você perguntou isso?

    - Nos anos 60 e 70 os intelectuais franceses eram muito mais atuantes...

    Bourdieu - Existe efetivamente uma crise de idéias, uma falência da crença em algumas instituições... Os intelectuais de esquerda perderam suas ilusões relativas à idéia da revolução, por exemplo. Hoje é mais difícil lutar contra o poder porque ele se exerce de forma muito mais sutil. Mas é preciso reconhecer que existiam muitos intelectuais que eram falsamente engajados, homens que só com o tempo mostraram
sua verdadeira face. 

    - Poderia citar algum exemplo?

    Bourdieu - Bernard-Henri Lévy é o pior deles, aquele que mais compromete o autêntico debate intelectual. O escritor Philippe Sollers também era falsamente revolucionário. Hoje ele é assumidamente um conservador radical e nacionalista. Os nomes que verdadeiramente importam na vida intelectual francesa não aparecem nos jornais e na televisão. Por exemplo, fala-se muito de Jean Baudrillard, mas muito raramente de Georges Dumézil, que é autor de uma obra infinitamente mais importante. Estamos vivendo um momento em que é preciso lutar acirradamente contra esses inimigos do pensamento.

    - O senhor acredita no surgimento de uma nova utopia?
 
    Bourdieu - Acredito numa nova utopia desde que ela seja construída em bases mais realistas - o que não tem nada a ver com o trabalho supostamente niilista dos nomes que citei há  pouco. Os intelectuais mediáticos fazer i renascer antigas tradições do pensamento para empregá-las de forma distorcida, como acontece com as idéias de Heidegger, que curiosamente construiu uma obra com uma atitude de permanente hostilidade em relação às ciências sociais. Para a construção de uma nova utopia, acredito que se deve buscar os ramos mais pragmáticos da filosofia.

    - O que o senhor pensa do conceito de pós-moderno?

    Bourdieu – É uma bobagem que não significa nada. Seus defensores controemum grande discurso para justificar o fim dos grandes discursos, das grandes narrativas. É um conceito de uma banalidade extraordinária, da mesma forma que a idéia de que "morte do sujeito" esteve em moda anos atrás. São expressões que não querem dizer rigorosamente nada.

     - Como o senhor vê o triunfo planetário do liberalismo e das leis do mercado?

    Bourdieu - Esta é uma pergunta muito geral, e o mais importante são as questões específicas. São os intelectuais mediáticos que gostam de falar sobre qualquer assunto, indiscriminadamente. Por exemplo, talvez fosse mais fácil responder a uma pergunta sobre os testes nucleares franceses, um exemplo trágico do reacionarismo do governo, ou sobre os efeitos da ação do FMI nas economias da América Latina. Quanto a isto, existe um problema muito sério, que é o novo imperialismo econômico. No Terceiro Mundo, o fim das utopias socialistas deixou um vazio muito grande, criando uma situação desesperadora é urgente reconstruir as bases da sociedade nesses países, criando condições para a divulgação do conhecimento e surgimento maciço de oportunidades de trabalho.

     - Mas a solução desses problemas não depende de uma reformulação de toda a ordem mundial?

    Bourdieu - Sim, claro, e temos que trabalhar para isso. Eu participei recentemente de um seminário com representantes da África e da Europa Oriental sobre a nova ordem mundial. Uma das idéias levantadas foi a criação e o fortalecimento de grandes instituições jurídicas multinacionais, que promoveriam uma verdadeira intemacionalização dos direitos. Em outras palavras, o que se propôs foi uma revalorização do conceito de internacionalismo, mas em novas bases, diferentes do internacionalismo comunista é necessário pensar na criação de novos modelos, mesmo que isso pareça muito complicado.

     - Desde a morte de Sartre, há  15 anos, não surgiu na França nenhum "maitre-à-penser"...

    Bourdieu - São os intelectuais mediáticos e os jornalistas que dizem isso - porque, naturalmente, eles próprios não são "maitres-á-pensar". É preciso levar em conta que o modelo sartriano de intelectual engajado correspondeu a uma etapa diferente da vida cultural francesa e sobretudo a uma etapa diferente da relação entre os intelectuais e os meios de comunicação. Muitas ações políticas de Sartre, ou mesmo de Michel Foucault, foram bem sucedidas porque contaram com um enorme apoio da imprensa. Hoje o espaço máximo que Sartre teria num jornal seria o de um artigo na página de opinião, porque os intelectuais mediáticos exercem uma espécie de monopólio da mídia. Suas obras são sem interesse, mas eles estão sempre dispostos a falar qualquer bobagem sobre qualquer assunto. Aliás, até mesmo Sartre disse muitas besteiras.

     - Fale sobre o seu trabalho no Parlamento Internacional dos Escritores.

    Bourdieu - Esta entidade existe justamente para tentar mudar esta situação. É uma tentativa de se criar uma Internacional dos Escritores. Mas é um trabalho muito difícil, porque escrever é uma atividade solitária, e por outro lado existem pessoas que querem participar apenas para aparecer. E fundamental combater o narcisismo. Por exemplo, lembro-me que muitos anos atrás Gilles Deleuze, Georges Dumézil, Alain Robbe-Grillet e eu escrevemos um manifesto protestando contra a situação na Polônia, mas decidimos que o texto não seria lido por nenhum de nós, mas por um ator. Hoje, uma das principais atividades do Parlamento é proteger escritores que são perseguidos politicamente.

    - O senhor escreveu ensaios profundos sobre a educação nos anos 70, com "A Reprodução", A situação piorou ou melhorou desde então?

    Bourdieu - Piorou muito, porque o governo francês não deu nenhuma atenção ao que eu escrevi na época, e já  estamos sofrendo as conseqüências disso.

    - Em livros como "A economia das trocas simbólicas" o Senhor faz análises penetrantes das transformações da vida cotidiana. Na esfera privada, o senhor acredita que hoje as pessoas são mais conservadoras do que 20 anos atrás?

    Bourdieu – É outra pergunta muito geral e sou obrigado a responder: eu não sei. Os intelectuais precisam ter a coragem de dizer "eu não sei", sobretudo diante de perguntas muito gerais, que não levam a nada. Para encerrar esse assunto, faço constar um episódio que me aconteceu. Um dia, Fernand Braudel procurou-me perguntando se eu gostaria de ajudá-lo a escrever um volume sobre o século XX, com o qual concluiria uma gigantesca pesquisa histórica. Pediu-me que dividisse minha reflexão em temas muito gerais, como o fim da religião, o renascimento do individualismo, etc. Então eu impus uma condição. Aceitaria fazer parte do projeto desde que pudesse escrever que eu não sabia todas as respostas. Apresentaria as grandes questões, mas as deixaria em aberto quando não soubesse como interpretá-las de forma satisfatória.

    - Ele concordou?

    Bourdieu - Sim, mas pouco tempo depois Fernand Braudel morreu, e o trabalho acabou não sendo feito.

     - Acabou de ser lançado no Brasil seu livro "Livre troca : diálogos entre ciência e arte" e em breve será  lançado "As regras da arte" sobre a obra de Baudelaire. Como o senhor caracteriza a sua abordagem sociológica da arte?

    Bourdieu - Minha preocupação principal em meus ensaios sobre á arte é analisar o que legitima social e culturalmente o gasto artístico de uma determinada época, ou seja, como a dominação econômica e social de uma classe também se manifesta culturalmente. As classes dominantes obtém, através de gostos de violência simbólica, a adesão das classes dominadas aos seus próprios critérios estéticos. Procuro também contextualizar historicamente a produção artística, fugindo dos clichês da inspiração e da genialidade. Não quero dizer com isso que um artista não dispõe de nenhum grau de autonomia. Baudelaire, por exemplo, subverteu completamente a tradição da literatura de sua época, e em As regras da arte eu tento explicar como isso foi possível.